Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Aboio, 2022).
Mais uma vez, o prazo pra próxima crônica tá se aproximando e eu aqui, no bar pé-sujo do bairro, esperando milagres. À mesa, minha esposa e enteada; no meio, entre nós, um quilo de camarão banhado no óleo, três copos de cerveja. Aos nossos pés, uma gatinha cinza fazendo as graças. Vez ou outra, ganha uma cabecinha melada e cheia de antenas, que ela devora sem cerimônia. Uma cadeira ficou vazia. Peço outro copo americano para a garçonete. Esse é pra Dona Inspiração ou qualquer bom espírito que quiser se juntar à gente.
— Mãe, qual é seu sentimento ao me ver bebendo?
Morena e suas perguntas filosóficas.
— Normal, ué. Cê tem 19 anos…
Pego mais uma cabecinha alaranjada pelas antenas e deixo-a cair pra baixo da mesa.
— Acho que tá prenha, a póbi.
E aí acontece.
— É ela, é ela — sussurra Larissa de repente. — A vizinha da frente!
Acabavam de sentar bem perto da gente. Ela, o namorado e outro casal. Pediram a mesma cerveja que a gente.
— Jéssica — chamo a garçonete. — Traz mais uma, pufavô, e manda outra praquela mesa bem ali, tá?
Faço um bico em direção aos vizinhos, que já estão secando os copos.
Sempre quis fazer isso. Mandar uma cerveja, uma dose, um bilhete dobrado… Acho tão lindo nos filmes antigos. Mas hoje e aqui, 2023 no Papicu, estou romantizando sozinha.
— O que você está fazendo? — Larissa em voz baixa, os olhos abertos num susto. Morena sem entender nada.
— Eu tô desfazendo uma desfeita de sete anos.
Morena ainda sem entender nada. Na época, ela tinha doze anos e não se lembra de como a mãe, num ataque de timidez, simplesmente ignorou a moça que acenava empolgadamente da varanda da frente para dar as boas-vindas à vizinha recém-chegada de mudança.
A cerveja chega na outra mesa. Com o canto do olho vejo a garçonete sinalizando na nossa direção. Agora a bola está com eles. Nem sei o que espero. Que mandem outra pra cá? Que cheguem junto pra saber o que fizeram pra merecer esse obséquio meio antiquado numa quinta-feira qualquer? Um joinha por cima das cabeças que nos separam? É, no mínimo isso. No mínimo algo. No mínimo qualquer sinal de que aceitam o pedido de desculpas. Mas não vem nada. Bebem a cerveja, pedem outra, juntam o casco ao anterior embaixo da mesa.
— Você não já sabe que o povo do Papicu num quer papo? — Larissa está chateada. Não comigo, mas com eles. — Não adiantou nada, e ainda perdeu uma cerveja!
— Perdi nada — respondo calmamente e quase solto um suspiro de alívio.
Tomo o último gole do meu copo, entrego um camarão inteiro para a gatinha cinza, e sorrio festiva: — Ganhei uma crônica.
Fortaleza, agosto de 2023
Desenho de Ariyoshi Kondo.